Polêmica com Luiz Pondé sobre Reparação Histórica
O debate tem que ser feito com o Movimento Negro e não com óvni
O professor e comentarista conservador, Luiz Felipe Pondé, escreveu um artigo contra a política de Reparação Histórica que foi publicado no jornal “Folha de S. Paulo” com o desdenhoso título: “No extremo da reparação histórica, descendentes de europeus seriam expulsos”. O artigo, do começo ao fim, é recheado de manobras que tentam refutar uma política que o articulista mal consegue entender. Existe um traço comum entre os intelectuais ignorantes: a arrogância. Pondé não foge à regra.
Ele inicia seu artigo afirmando que não entrará no conceito de Reparação e o faz por uma razão simples, ele não sabe o que seja Reparação Histórica, seus vários conceitos e interpretações. Daí ter sido mais cômodo julgar o termo Reparação como “essencialmente, ideológico”.
Por não ter a mínima noção do sentido da política de Reparação Histórica, Pondé entra num labirinto de divagações niilistas. Indaga, por exemplo, “Como teria sido o mundo se não tivéssemos ajudado a eliminar todos os nossos irmãos sapiens que um dia conviveram conosco nesse efêmero planeta azul?”.
Veja-se não ser possível entender se Pondé está defendendo o darwinismo social, teoria racista que justificou o neocolonialismo afro-asiático no final do século XIX, ou se está debatendo com espantalhos criados por ele próprio. A prevalência do Homo Sapiens em relação a outras espécies não tem absolutamente nada que ver com a colonização da América e a recolonização afro-asiática, se é isso que o enigmático Pondé quer dizer. Nesses dois casos, os europeus se apoiaram em teorias racistas. Na neocolonização, bem mais recente, as burguesias europeias (e não todos os europeus) difundiram a falsa ideia de que a Europa era portadora da raça, da religião e da cultura superior e, que, portanto, deveriam submeter todos os demais povos e raças em nome da evolução da civilização. Fizeram isso para jogar uma cortina de fumaça sobre a criminosa expansão imperialista.
Então, o que isso tem que ver com a prevalência do Homo Sapiens sobre o homem de Neanderthal? Qual teoria racista foi utilizada para justificar isso? Se o racismo, enquanto teoria sistematicamente elaborada, é um fenômeno tipicamente capitalista, ou seja, conta com pouco mais de 500 anos. Em se tratando do racismo contemporâneo, o chamado racismo pseudo-científico, o tempo é ainda mais curto.
Não satisfeito, Pondé segue apresentando argumentos típicos de quem não tem com o que argumentar, diz ele: “Os que foram cá trazidos como povos escravizados deveriam ou não ter direito a permanecer no território que até ontem tinha sido o Brasil? Historiadores, antropólogos e mais especialistas no assunto, na sua maioria, de partida, deveriam chegar a um acordo. Ter vindo para cá à força caracteriza colonialismo? Penso que não. Isto posto, que fiquem”.
Afinal, como esse fato se relaciona com a questão da Reparação? Quem está defendendo isso, professor, o senhor? Bom, pelo que se saiba, nenhuma organização política antirracista tem defendido tamanho absurdo! Na verdade, todos os seus argumentos se notabilizam pela incapacidade de debater a fundo o tema, tal como faz com o conceito de mestiçagem, sobre o qual o senhor expõe: “Temo que não se possa usar mais essa expressão porque já seja sinônimo de genocídio —aliás, palavra da moda, não?”
O senhor teme o quê? Não saber se defender? Tem certeza de que o tema genocídio está em moda? Em moda, por quê? Por que estamos denunciando? Sábio professor, aqui no Nordeste costumamos falar que: “quem não pode com a formiga, não assanha o formigueiro”. Se não entende do assunto, estude, pesquise e, aí sim, venha quente para o debate porque o tema está fervendo como nunca.
Aliás, o senhor sequer teve a coragem de explicar o porquê de o tema haver ganhado tanta notabilidade entre os brasileiros nos últimos meses. Mas, explica-se. O Banco do Brasil foi indiciado pelo Ministério Público Federal por ter sido a instituição que mais financiou a escravidão africana no Século XIX, e vai ter que sentar no banco dos réus. (Segue aqui o documento do Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe sobre o tema. Ah, e ele foi escrito por pessoas pretas, e não foi escrito por Alien incolores).
Se se considerar que o Brasil foi o país que mais recebeu africanos na condição de escravizados, e que o Século XIX foi o período em que mais entraram africanos escravizados em nosso país, não é exagerado afirmar que o BB foi o maior patrocinador da escravidão neste planeta chamado Terra, independentemente de como o senhor queira colocar os continentes em seu Mapa Mundi.
O Banco do Brasil não só financiou a escravidão, caro Pondé, como foi refundado em 1853, após a proibição definitiva do tráfico internacional de escravos, para lavar o capital acumulado com o tráfico ilegal de africanos. Ou seja, sábio diletante, não se está falando da pré-história nem se está propondo que os europeus sejam expulsos da América (se o sr. está pensando isso, aconselha-se a procura de um psiquiatra); o argumento que se levanta na política de Reparação Histórica é que uma das instituições capitalistas mais importantes do Brasil contemporâneo fez fortunas e mais fortunas com o tráfico e a escravidão dos nossos antepassados. Precisa desenhar?
Porém, diferentemente do senhor, a direção do BB foi obrigada a reconhecer isso publicamente, apesar de distorcer o tema da Reparação. Aliás, o BB distorce o conceito de Reparação em benefício próprio; o senhor, incapaz de compreendê-lo, cria amálgamas, falsas polêmicas, rebate ideias que ninguém defendeu, refuta proposta por ninguém sugerida, a não ser por você mesmo, em ácida polêmica com seu próprio umbigo, dentro do seu labirinto político particular.
O mais engraçado, para não dizer trágico, é ser o senhor um inflexível defensor do Estado de Israel e ter, recentemente, juntado-se à trupe de sionistas que alegam ser absurdo comparar o genocídio dos palestinos na Faixa de Gaza com o genocídio dos Judeus durante a II Guerra Mundial. Por seu discurso reacionário, os judeus não deveriam ser reparados, afinal de contas, quando exigiram Reparação, o holocausto já estava no passado. Excluindo daí a fundação do Estado genocida de Israel, criado pelos sionistas e pelo imperialismo significando nada mais que opressão e destruição dos direitos dos palestinos, que não apresenta qualquer conexão com Reparação, consideramos que toda política de Reparação aos judeus foi irrelevante diante do que significou o holocausto.
Pois bem, quando os nazistas foram expulsos dos territórios que invadiram durante a II Guerra Mundial, o que deveria ter sido dito? Por favor, não façam isso, pois quase toda a Europa algum dia já foi invadida? Ou que “Em tempos remotos os Homo sapiens fizeram o mesmo com os neandertais?”. Fazer isso significaria banalizar o holocausto judeu, algo digno de ser caracterizado, implacavelmente, como uma comparação racista. Desculpem as crianças, mas tal lógica de raciocínio é pra lá de infantil.
Ninguém, mas absolutamente ninguém, é obrigado a ter acordo com a política de Reparação, porém salta aos olhos que a Folha de S. Paulo se preste a publicar um artigo tão “cothurnocystis”, o conhecido bicho sem pé nem cabeça, como esse do professor Pondé para polemizar com uma política que ele mesmo reconhece estar cada vez mais popular. Como diz a canção, “brincadeira tem hora”.
REPARAÇÃO HISTÓRICA: uma política com pé e cabeça
O tema da Reparação é um tema sério. Ele religa o brasileiro a seu passado histórico, ao sofrimento do povo negro, de famílias e sociedades inteiras que foram desestruturadas, de mulheres que foram estupradas, de homens que foram jogados aos tubarões, que foram acorrentados, chicoteados, humilhados e que viviam em média apenas sete anos depois de colocarem os pés fora dos porões dos tumbeiros para pisar no chão deste país. Tudo isso, para ajudar a erguer esse sistema chamado capitalismo, que não só condenou os antepassados do povo negro brasileiro, mas continua condenando-o no presente.
Professor Pondé, no “DNA” da política de Reparação, existe esse sentimento transbordando, tal como para os judeus em relação ao holocausto praticado pelo nazismo ou para os palestinos em relação ao genocídio praticado atualmente pelo Estado sionista de Israel, Estado assassino que o senhor, infelizmente, defende. A História, que o senhor trata como um desprezível cadáver posto sobre uma pedra no IML, para nós, trabalhadores e oprimidos, tem uma importância enorme para a luta política presente, não é mera contemplação.
É certo que não existe um conceito fechado ou uma política unificada sobre Reparação Histórica em relação à questão negra para o conjunto do Movimento Negro brasileiro. As diferenças existem, são profundas e tendem a se aprofundar à medida que as discussões forem avançando. Porém, existe um ponto em comum de onde partem todos aqueles que defendem a Reparação: a escravidão, considerada o maior crime de lesa-humanidade cometido pelo capitalismo, palavra inexistente no seu artigo. Não só a escravidão, mas também a forma como se deu abolição, sem reparação, e a neocolonização. É esse o ponto de partida, caro professor.
E não se está tratando apenas dos prejuízos incalculáveis causados às vítimas, mas também dos privilégios, do poder e das riquezas, concentradas pelos grupos que escravizaram e espoliaram. E esse tripé – privilégio, poder e riqueza – não se diluiu no tempo e no espaço, como o senhor quer fazer pensar. Eles foram herdados pelos tataranetos dos que escravizaram e espoliaram, assim como a pobreza, a humilhação, o sofrimento e a exploração foram herdados pelos tataranetos daqueles que foram escravizados e espoliados. Tampouco se fala aqui de herança genética, mas daquilo que é produto de uma política sistematicamente elaborada pelo Estado brasileiro e sua burguesia. O caso do Banco do Brasil, negligenciado em seu artigo, é só a ponta do iceberg. Quase todas as grandes instituições brasileiras com mais de 150 anos de existência lucraram com a escravidão e seguem utilizando todo o império que ergueram com o sangue e o suor dos antepassados do povo negro brasileiro para continuar oprimindo, humilhando e explorando.
Que fique bem enegrecido, professor: a meta que importa e a bandeira que se levanta é a organização e mobilização do povo negro e da classe trabalhadora para sarar essa ferida que segue aberta e sangrando muito.