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O combate à lavagem de dinheiro pode ser a solução para acabar com o crime organizado?

Maria Costa, médica do SUS

16 de novembro de 2023
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Foto por Judy Robinson-Cox via Flickr

Em decorrência da mais recente crise de segurança pública no Rio de Janeiro, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, e o Governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro assinaram, no último dia 8 de novembro, um acordo de cooperação técnica para a criação de um grupo que atuará como apoio às investigações de crimes financeiros e lavagem de dinheiro, visando desmantelar a engenharia financeira de organizações criminosas e recuperar ativos ilícitos. Esse grupo, designado de Comitê Integrado de Investigação Financeira e Recuperação de Ativos (CIFRA), será formado por membros das Polícias Rodoviária e Federal, Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), Secretarias de Polícia Civil e da Fazenda, e Ministérios Públicos Federal e do Estado do Rio de Janeiro.

Os termos exatos deste acordo ainda serão publicados no Diário Oficial da União, pelo que, por ora, ainda estamos perante mais uma ação de propaganda e marketing do ministro da justiça e segurança pública. Semelhante ao Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações criminosas que foi anunciado com toda a pompa e circunstância no dia passado dia 2 de outubro mas cujo documento completo, com as diretrizes, metas e planos só estará pronto em 90 dias após o seu anúncio. Mas a questão central que quero abordar neste artigo é….

O combate à lavagem de dinheiro pode ser a solução para acabar com o crime organizado, e mais especificamente no Rio, acabar com as milícias e facções narcotraficantes?

Antes de mais nada, nem Dino coloca esse objetivo para o CIFRA, segundo ele se trata de “descapitalizar, enfraquecer as organizações criminosas em geral, especialmente a narcomilícia que atua no Rio de Janeiro”.

Mas se, como já dissemos aqui, a característica central das facções de narcotraficantes e milicianos é serem negócios capitalistas ilegais, não faria sentido combater essas organizações visando justamente aquilo que é o seu objetivo central, o lucro? Essa tese é defendida por vários economistas e jornalistas, muitos deles honestos, que em base a investigações sérias desvendam os meandros de esquemas bilionários de lavagem de dinheiro de grandes conglomerados do crime organizado, fazem consultorias para governos e bancos, sugerem e elaboram leis e medidas que poderiam blindar o sistema contra o dinheiro sujo… no entanto a realidade teimosamente vai no sentido oposto.

O combate à lavagem de dinheiro do crime organizado se choca com um obstáculo até agora intransponível: o sistema financeiro internacional.

“O dinheiro das drogas no valor de bilhões de dólares manteve o sistema financeiro à tona no auge da crise global (…) o único capital de investimento líquido disponível para alguns bancos à beira do colapso no ano passado. (…) Como resultado a maioria dos $352 bilhões em lucros com drogas foram absorvidos pelo sistema econômico.”

Esta declaração foi dada por Antônio Maria Costa, em dezembro de 2009, que à época era chefe do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). De lá para cá a única coisa que mudou é que cada vez maiores quantidades de dinheiro sujo são lavados nos grandes bancos do sistema financeiro internacional, sedentos dos lucros astronômicos, em dinheiro liquido, do crime organizado.

Que fique claro, não se está falando de contas offshore em paraísos fiscais, mas sim de contas legais em grandes bancos internacionais como JPMorgan, Deutsche Bank, Barclays, HSBC, Bank of America, Citigroup, China Investment Corporation, e um longo etc.

Para quem quiser detalhes das quantidades estimadas de dinheiro sujo lavado por grandes bancos pode consultar os Fincen Files, produto da investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, de 2020, a partir do vazamento de relatórios do Financial Crimes Enforcement Network (FinCEN). O FinCen, ou Rede de Fiscalização de Crimes Financeiros (em português) é uma agência do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos que coleta e analisa informações sobre transações financeiras a fim de combater a lavagem de dinheiro nacional e internacional.

São mais de 200 000 transações financeiras suspeitas, que decorreram em mais de 170 países, avaliadas em mais de 2 trilhões de dólares e que ocorreram de 1999 a 2017. A investigação demonstra que, embora os bancos e governos tivessem os meios, na verdade desempenharam um papel na facilitação da lavagem de dinheiro e outros crimes fraudulentos. Apesar desta quantia ser absurdamente gigantesca é uma gota no oceano do dinheiro sujo, já que a reportagem  teve acesso apenas a 0,02% dos relatórios de atividades suspeitas que passaram pelo FinCen. Para além disso, como os casos de lavagem de dinheiro  envolvendo o HSBC demonstram, só uma parcela ínfima das transações criminosas chega a ser reportada ao FinCen.

HSBC, “O lugar para lavar-dinheiro”

A frase acima é atribuída ao chefe de um grande cartel de drogas mexicano, e foi informada por autoridades mexicanas ao CEO da filial mexicana do HSBC, que não fez nada para mudar o fato, pelo contrário. O caso específico pode ser visto em um dos episódios da série documental da Netflix Na Rota do Dinheiro Sujo, “O Banco dos Cartéis” que relata como esta mega instituição financeira não só não fez nada para impedir a lavagem de dinheiro dos cartéis do narcotráfico como facilitou todo este processo.

Em 2012 o HSBC chegou a um acordo com o Departamento de Justiça do governo norte-americano, o gabinete da Procuradoria Geral dos EUA e o gabinete da procuradoria de Nova York, em que admitia ter “ignorado os riscos de lavagem de dinheiro associados à execução de negócios com certos clientes mexicanos (…) como resultado (…) pelo menos $881 milhões de dólares em receitas do narcotráfico(…)”. A expressão pelo menos aqui tem que ser valorizada, já que no próprio acordo o HSBC revela que falhou em:

“b. monitorar adequadamente mais de $200 trilhões em transferências bancárias de clientes localizados em países que o HSBC Bank USA classificou como risco “padrão” ou “médio”, incluindo mais de $670 bi de transferências do HSBC México; c. Adequadamente monitorar bilhões de dólares em compras de notas de dólares, entre Julho de 2006 e Julho de 2009, vindo das afiliadas do HSBC, nomeadamente $9,4 bi do HSBC Mexico”

Ou seja, apesar de ser de conhecimento comum que o México é um local de risco para dinheiro proveniente do crime organizado, o banco categorizou este país como sendo de risco padrão (o menor nível de risco do banco). Para além disso à época o HSBC controlava 60% do mercado global de transações em dólares em “dinheiro-vivo”, mesmo sabendo dos riscos associados a esse tipo de transações o HSBC tinha designado “um, às vezes dois” funcionários para pessoalmente rever transações para cada 500-600 clientes.

Apesar de categoricamente ter facilitado a ação de narcotraficantes naquilo que é o seu objetivo central, o lucro, nenhum dos dirigentes do banco, nem o banco foram criminalmente indiciados, apenas multados em $1,92 bi (o que não fez nem coceguinhas no patrimônio do banco) e submetidos a 5 anos de período probatório, durante os quais as suas medidas para prevenir a lavagem de dinheiro seriam monitorados por um inspetor nomeado pela justiça.

E… o HSBC continuou a lavar bilhões e bilhões de dólares de dinheiro sujo a nível mundial. Vários escândalos emergiram desde então, como o da sede da Suíça que participou de lavagem de dinheiro de organizações de narcotraficantes, totalizando mais de $4,4 bi só em transações flagradas pelo investigação FinCen Files, entre 2012 e 2017 (que como a própria reportagem afirma só flagrou uma gota no oceano de dinheiro sujo transacionado pelos grandes bancos).

E por aqui pode ser diferente?

Atualmente podem circular no Brasil cerca de 670 a 840 toneladas de cocaína por ano, entre o que é consumido internamente e o que é exportado, se aplicarmos a estimativa de vários especialistas de que cerca de 15-20% da cocaína que circula é apreendida. Se consideramos que circulam, aproximadamente, 750 toneladas de cocaína por ano a um preço de US$ 50 mil dólares (dados da UNODC), poderemos ter um faturamento do narcotráfico no Brasil ao redor de US$ 37,5 bilhões de dólares, só no mercado de cocaína. Porém, fazendo as contas pela quantidade apreendida de maconha e cocaína no Brasil em 2020, considerando a apreensão em 20%, teremos um faturamento do narcotráfico no Brasil ao redor de US$ 47 bilhões de dólares. Para se ter uma ideia este é valor similar ou superior ao do setor automobilístico do país que faturou, segundo a ANFAVEA, $39,6 bilhões em 2020. (nota: estes valores foram analisados e compilados num estudo ainda não publicado do ILAESE, dirigido por Nazareno Godeiro, sobre tráfico de drogas e crime organizado no Brasil.)

Até pode ser que forças-tarefa minimamente mais sérias do que existiram até agora indiciem e até prendam pequenos operadores financeiros como Dário Alencar Pereira e Márcio Roberto de Souza Costa suspeitos de lavar cerca de R$100 milhões do PCC desde 2020, ou Júlia Lotufo, viúva de Adriano da Nóbrega, que responde em liberdade a um processo de lavagem de dinheiro e organização criminosa, ou mesmo Luciane Barbosa, esposa de um chefe do CV e que recentemente fez visitas ao Ministério da Justiça. Mas estamos falando de um negócio que alimenta bilionários de fato, social e economicamente muito distantes dos operadores das milícias, narcomilícias e narcotraficantes que exploram as comunidades pobres do Rio de Janeiro e do Brasil, são grandes empresários e banqueiros que circulam nas altas esferas da sociedade, vivem em condomínios de luxo, são parte da alta burguesia nacional e internacional e por isso, no atual sistema econômico, são de fato intocáveis.

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